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Acordo de não persecução penal da Lei "Anticrime" e as reflexões sobre o impacto no campo ambiental

A Lei Federal 13.964, de 24 de dezembro de 2019, denominada popularmente como “Lei Anticrime”, inovou substancialmente o ordenamento jurídico penal e processual penal do Brasil.


Certamente a “Lei Anticrime” faz nascer um novo marco legal no direito e no processo penal, trazendo consigo novos parâmetros e critérios inovadores. Trata-se de um conteúdo ainda precário para os operadores do Direito, que ainda será bastante debatido na medida em que seja aplicado ao caso concreto. A ciência da dimensão dos efeitos práticos e dos impactos concretos da “Lei Anticrime” na sociedade depende do tempo, de forma que qualquer análise atual deve ser feita com cautela, pois não será exaustiva.


Ciente disso, o presente artigo pretende discorrer tão-somente sobre os pontos que envolvem o acordo de persecução penal e sugerir possíveis reflexões no âmbito ambiental.


Pois bem. Do começo.


Pelo princípio constitucional da legalidade, exsurge o princípio da obrigatoriedade da ação penal, definido por Julio Fabbrini Mirabete como “aquele que obriga a autoridade policial a instaurar inquérito policial e o órgão do Ministério Público a promover a ação penal quando da ocorrência da prática de que crime”.[1]


É certo que a ideia central do princípio da obrigatoriedade da ação penal foi impedir que o Ministério Público, injustificadamente, abra mão de intentar ações penais aptas e maduras, afastando o favoritismo e o protecionismo, o que, de fato, a obrigatoriedade da ação penal pretende banir. Tal intento, aliás, decorre justamente dos conceitos de moralidade e do dever de objetividade do órgão ministerial trazido pela Constituição Federal de 1988, tido como verdadeiro agente participante na política criminal.


Nesta linha de raciocínio, aduz o Procurador de Justiça Motauri Ciocchetti de Souza:


A regra da obrigatoriedade insere-se nos mecanismos de suporte do próprio Estado Democrático de Direito, destinada que está a impedir análises arbitrárias e potestativas acerca da conveniência de provocar-se a jurisdição penal, trazendo à sociedade a certeza de que o responsável pela prática de um delito será submetido ao cânone do devido processo legal. [2]


Entretanto, não se pode deixar de polemizar que, o que se vê nos dias atuais, é a obrigatoriedade da ação penal sendo lançada deliberadamente, quiçá arbitrariamente, porquanto muitas vezes as ações penais poderiam ter sido evitadas! Por isso, há tanta relevância no acordo de não persecução penal (apesar de suas prováveis problemáticas).


Claramente, a obrigatoriedade da ação penal não é - e nem poderia ser - o único desfecho, exigindo dos legisladores outras soluções no Direito comparado acerca da persecução penal pelo Ministério Público.


O acordo de não persecução penal vem, então, como uma forma de mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. Frisa-se, todavia, que essa consensualidade, em qualquer caso, estará sempre condicionada à apreciação do Poder Judiciário.


Desta forma, com o advento da “Lei Anticrime” ampliou-se as possibilidades de justiça penal negociada.


O acordo de não persecução penal, inserido no artigo 28-A do Código de Processo Penal[3], é uma dessas alterações transformadores, e se coloca como mais um instrumento da justiça penal consensual no Brasil.


Este não se trata de uma novidade, em si, pois o acordo de não persecução penal já estava previsto em Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público. Entretanto, não estava previsto em Lei.


Enquanto os acordos não possuíam previsão legal, a sua (não) realização estava condicionada à exclusiva concordância dos representantes do Ministério Público e dos Magistrados, o que favorecia o tratamento diferenciado e gerava insegurança jurídica.


À vista disso, é com bons olhos que se vê a iniciativa do legislador em regulamentar o acordo de não persecução penal através de Lei, pois também supre algumas lacunas presentes nas Resoluções anteriores do Conselho Nacional do Ministério Público, promovendo maior segurança ao investigado.


Mas, afinal, o que seria o acordo de não persecução penal?


De início, em apertada síntese, o acordo de não persecução penal pode ser definido com uma conjunção de interesses entre as partes que integram uma relação processual. De um lado, o Ministério Público, atuando como órgão acusador e fiscal da lei, propõe os termos do acordo para que a investigação não evolua para uma tradicional e penosa ação penal. Do outro lado, o investigado analisa os termos e, decidindo aceitá-los, confessa o ilícito e é beneficiado com uma reprimenda mais branda do que aquela que seria estabelecida em uma sentença penal condenatória, afastando-se, por conseguinte, eventual reincidência delitiva.


O acordo de não persecução penal é, então, um instituto típico da fase pré-processual. Ou seja, é oferecido antes do processo penal judicial. Para tanto, exige-se confissão formal da prática da infração penal, dentre outros requisitos presentes no artigo 28-A do Código de Processo Penal.


Então, a partir da alteração legislativa no campo penal, o Ministério Público pode propor o não processamento do acusado, desde que (i) não seja caso de arquivamento; (ii) haja confissão formal e circunstancial da prática da infração penal; (i) a infração penal deve ter ocorrido sem violência ou grave ameaça, e sua pena mínima deve ser inferior a quatro anos.


As condições, estas cumulativas e alternativas, para a proposta de acordo são as seguintes:


I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.



Acima destacou-se apenas um trecho, mas o novel artigo 28-A do Código de Processo Penal detalha ainda mais os requisitos para que a proposta de acordo de não persecução penal seja viável, inclusive definindo os casos em que não será cabível.


Vale também ressaltar que a oferta do acordo por parte do Ministério Público não vincula a parte. Ou seja, a parte tem a autonomia para aceitar ou não o acordo, sem que sua decisão a prejudique na investigação ou no processo penal que será deflagrado. Esta escolha é o eixo da justiça penal negociada.


No campo do direito ambiental, a aplicação do acordo de não persecução penal, de plano, parece promissor.


A questão de maior relevo, em se tratando de acordo de não persecução penal envolvendo crime ambiental, é certamente a exigência de reparação do dano, que será cláusula obrigatória e indeclinável em todo e qualquer acordo desta natureza. Isto porque, a garantia da reparação dos danos causados em detrimento do meio ambiente é uma das premissas básicas da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98).


Por oportuno, registra-se que a reparação do dano ambiental se faz por retorno ao status quo ante ou mediante indenização em dinheiro, eis que nem sempre será possível restituir à natureza a qualidade anterior ao dano.


Traz-se à baila a lição e indagação de Alex Fernandes Santiago:


A conclusão é de que nada servirá um Direito Penal que pretenda proteger o meio ambiente e não se ocupe da reparação do dano ambiental. A reparação é essencial, imanente a qualquer discussão sobre meio ambiente. Primeiro prevenção e, em seu fracasso, imediatamente buscar a reparação. De que servirão sanções como a pena privativa de liberdade para aqueles que desmatam a floresta amazônica, por exemplo, se também não lhes é exigida a recomposição do ambiente danificado? [4]


Se o instituto do acordo de não persecução penal for “bem utilizado” tem plenas condições de contribuir para maior eficiência, eficácia e celeridade na repressão às condutas aventadas contra o meio ambiente, servindo como um expediente poderoso para a concretização da tutela ambiental, a qual se confere status de direito fundamental.


Até porque, a Constituição Federal (art. 225) estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Nesta ótica, além de impor ao Poder Público, também impõe à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Elegeu-se, portanto, uma importante relação de reciprocidade entre o direito e o dever, em prol da dignidade humana e bem-estar.


Enfim, o debate se estenderá para que se garanta que a aplicação do acordo de não persecução penal não seja apenas um instrumento de coerção, mas sim um típico instrumento estruturado no Estado Democrático de Direito.




 

Autora: Maria Luiza Rottili Roeder Silvestre, Advogada inscrita na OAB - Secção de Santa Catarina. Graduada na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Vale do Itajaí (2019).


 

[1] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1993, p. 47. [2] SOUZA, Motari Ciocchetti de. O Ministério Público e o princípio da obrigatoriedade: ação civil pública, ação penal pública. São Paulo: Método, 2007, p. 163. [3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm [4] SANTIAGO, Alex Fernandes. Fundamentos de Direito Penal Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey. 2015. p. 349.



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